Friday 28 January 2011

Desodorizante Moldura

Nasceu. Vá lá, já não foi nada mau, há quem não tenha essa sorte. Seu pai, Carrapiço Moldura, tinha uma velha mania de fazer salto em altura para o sofá. Nem sempre com bons resultados, diga-se, como se confirmou a 25 de Maio de 1984, quando ao atirar-se para o sofá o comando da televisão ficou alojado no seu canal rectal.

Fora isso, Desodorizante teve uma infância feliz. A sua mãe levava-o a passear nos jardins da cidade, a andar de escorrega e dar de comida aos patos. De vez em quando andava também naquela espécie de baloiço a moedas às portas dos cafés, em que se metia cem paus e a criança baloiçava uns bons dez segundos. Quase excitante, diriam alguns. Desperdício de dinheiro, diriam outros.

Mas a sua actividade predilecta quando ia passear com a mãe era mesmo dar pão duro de comer aos patos. Por vezes, deixava endurecer pães de forma inteiros, que atirava parvamente às cabeças das aves, pobrezinhas, que lá iam ficando - à semelhança de Desodorizante - com lesões cerebrais.

O melhor jardim da cidade, para Desodorizante, era o Jardim dos Drogados. Tinha sempre aqueles tipos muito castanhos com a Dica da Semana enrolada debaixo do braço para apontar quando andavam a arrumar carros. Mas uma coisa era certinha, não se comparava ao Jardim das Putas.

Bukowski #2

Eu era jovem quando o meu herói era jovem
sendo a única diferença entre nós o facto de
ele se ter tornado rapidamente famoso
e assim que vi a foto dele
no jornal
em discotecas com famosos
e sem que eu tivesse sequer tempo de respirar, veio uma
guerra
e ele vestia uma farda
toda janota
mas eu lembro-me de ler nos seus
livros
ele dizer que nunca mas nunca iria para a
guerra.
bem, muitos de nós têm
heróis
e não queremos que eles
sejam
vulgares,
queremos que eles sejam perigosos
e originais
e nunca se comprometam com nada.

Eu não conseguia compreender
como podia um homem escrever tão
provocadora e claramente
e depois ir fazer o
contrário.
pensava que aquilo
que tu escreves
vem da tua
alma
e um
final destes
cobarde
protagonizado pelo meu herói
era impossível.

então virei-lhe as costas
e assim o fez também
o público - ninguém estava muito interessado
no livros acerca da sua
vida no exército.

depois ele foi para Malibu e sentou-se na praia e
observou as ondas
caindo na costa como mentiras como mentiras como mentiras...

A Morte de Um Herói, Charles Bukowski. (tradução do Pénis)

Sunday 23 January 2011

Melomanias #44

Thursday 13 January 2011

A Visão Profética de Cicciolina Gordo




















O sol penetrava a vidraça, atravessando os ares do quarto numa coluna de luz. Na cadeira da secretária onde tinha o hábito de se sentar para escrever, estava adormecido Cicciolina Gordo. Interrompendo-lhe esta luz o ressonar, levantava-se ele agora da cadeira e deslizava prontamente a cortina, deixando-se entregar à misericórdia destes raios solares. O escritório transformara-se numa selva de livros espalhados e anotações e comida estragada. Faz duas semanas que não cortava a sua barba suja de sopa. As unhas, há meses.

"Estou bloqueado", pensava Cicciolina Gordo, enquanto abria a janela do escritório e acendia um cigarro.

Assim tinha passado os dois últimos meses, entregue às intermitências do desassossego, tresandando a sua casa a algo entre o azedo, o podre e virilhas por lavar. A escrita não lhe saía, e cada vez mais ele se via como um ser humano adiado nos labirintos da sua própria imperfeição. O bloqueio criativo revela-se, em períodos prolongados, fodido.

Assaltavam-no, como nunca, pesadas dúvidas existenciais. Seria o universo, ao contrário do que pensamos, uma criação irracional? Seria o próprio deus que este mundo criara, uma entidade conflituosa e desordeira, como os forcados que frequentam a Feira da Golegã? E se assim fosse, se este deus criador não passasse no fundo de um forcado, será que usaria barrete e calças daquelas que apertam os tomates e tentam escapar pelo rego do cu acima? Estes pensamentos impediam Cicciolina Gordo de viver em paz a sua vida, quando a inspiração se ausentava.

Certa vez, ao acordar, sentiu uma luz. Uma presença. Dormia na cama do seu quarto. Olhou o despertador - mas eram ainda três da manhã. Então, levantando-se da cama, a luz forte e rosada penetrou-lhe nos olhos até nada haver que restasse do seu quarto. A realidade dissolveu-se num nevoeiro e transfigurou-se num mundo de energia pura e de formas rarefeitas.

Pouco a pouco, naquela visão edénica, as formas rarefeitas tornavam-se objectos pertencentes a um lugar que Cicciolina Gordo bem conhecia - o café da biblioteca. Ali estava o balcão, os croissants do dia anterior, as mesas todas vazias. Mas ouviu uma voz:
"Cicciolina Gordo..."
Algo ou alguém chamava o seu nome. Mas como, se ninguém ali estava?
"Cicciolina Gordo..."
A voz... parecia vir de uma mesa do canto. Ele aproximou-se. Passo a passo, olhando em volta, chegou perto da mesa. Num prato, uma tosta mista ainda fumegava, acabada de fazer.
"Cicciolina Gor - Ah, estás aqui."

Sim, a tosta mista acabara de falar.
"Mas como, se ainda não fumei nada hoje nem meti ácido marado?", pensou Cicciolina Gordo.
E assim constatou o óbvio:
"Mas... tu és uma tosta mista!"
Nisto, a tosta principiou a flutuar, e ultimou:
"Quanto muito, terei o aspecto de uma tosta mista, mas sou de facto Deus. Mas podes chamar-me PUTA."
"Porquê PUTA," - questionou Cicciolina Gordo - "Ainda por cima com maiúsculas?"
"Isso é porque deixei o Caps Lock ligado, mas esquece lá isso. O que importa é que sou Deus. Ou PUTA, como preferires."
"Mas como? Como pode Deus ser uma tosta mista?"

A paciência de Deus é infinita. Ou era, até aqui.
"Opá cala-te. Não te lembras que apareci a Moisés num arbusto? Agora apareci numa tosta mista porque, sei lá, apeteceu-me. Arbustos que ardem perpetuamente é cena buédesda velha mén, tipo velho testamento e isso."
"Porque falas comigo então? Será que aquele ácido marado que o Navalhas me arranjou na viagem de finalistas do 12º me fritou a mioleira?"
"Não, Cicciolina Gordo" - disse PUTA - "Trago-te uma missão profética."
"Missão profética? Mas eu sou um simples escritor..."
PUTA olhou Cicciolina Gordo com os olhos ternos que só uma tosta mista pode fazer, e disse-lhe:
"Não, não és um mero escritor. És o autor de obras tão singulares como "Sonham os Forcados com Touros Mecânicos" ou "Os Três Testículos de Palmiro Astúcia". "
No meio de todo aquele queijo flamengo e fiambre rançoso, PUTA trouxera-lhe a boa nova.

"O meu reino está próximo. Vem aí o Messias. Não o reconhecerás à primeira, pois trará vestidos trajes comprados na feira de Santana. Marcas contrafeitas. Uma camisa Sacoor com um rato enorme nas costas, mais propriamente. E ele vem espalhar a minha palavra."
Cicciolina Gordo nem queria acreditar - esquecera-se de ir meter o Totoloto, e agora que estava na presença de PUTA, não ficava bem sair da alucinação só para isso.
"Calou! " - gritou Deus. Perdão, PUTA, interrompendo os devaneios de Cicciolina Gordo.
"Como eu dizia, falo contigo hoje porque foste escolhido para anunciar a chegada do Messias. Cada palavra tua e dele serão minhas, e poderão conter asneiredo. Também gosto de mandar a minha caralhada de vez em quando, sabes? Pronto, no fundo é isso. O universo onde vives é uma ilusão criada por mim há triliões de anos enquanto o Paraíso estava em obras. Sabes como são os trolhas de hoje em dia, fazem ronha e nunca mais acabam a obra, para esmifrar mais um bocado um gajo."

"Não temas, a minha sabedoria infinita servir-te-á de guia. Podes comer rameiras sidosas de bom grado que evitarei o teu contágio. Os dias dos poderosos chegaram ao fim, e começam os dos sabedores. Se falares, não temas, e fala alto como a tua sogra que era peixeira, pois estarei sempre contigo. A não ser que esteja a dar um bom jogo da bola, claro."

A luz penetrava de novo nos olhos de Cicciolina Gordo, que voltava ao quarto, sentado na beira da sua cama. Olhava as suas mãos e tocava nos móveis, certificando-se de que voltara à sua realidade. Teria tudo aquilo sido um sonho? Uma alucinação? Não interessava. A casa continuava a cheirar a azedo, podre e virilhas por lavar. Mas Deus era um tipo porreiro. Uma boa PUTA.

E pela primeira vez em meses, acendera-se na vida de Cicciolina Gordo uma chama de esperança, e entre a barba suja de sopa, ele sorriu.